Aquele ano novo

14:43

31.12.11




Atribuiu o sofrimento daquele ano à maneira como pôde recebê-lo: calças nas mãos, suando frio, interrompendo o sacrifício de dar vazão à mistura do porre antecipado com a gula desmedida que lhe marcaram o último dia do ano. Não que fosse religioso, mas da religião construída sob sonolenta catequese sobrou-lhe o medo injustificado, mítico, do sobrenatural, expresso em uma superstição quase pueril, que lhe dava freios convenientes.
Assim, sem direitos aos ritos pré-ano novo, recebendo-o de calças arriadads quando tentou-se levantar no minuto final, pesou-lhe na alma a sinistra sensação de um ano que entrava derrotado, cheio de más possibilidades. Assim foi, segundo seu relato minunciosamente dolorido.
Por isso, naquele ano ele ia à forra, sóbrio e esperançoso, cumprir a ritualística e ter um ano vitorioso. Rimavam até as suas pretensões.
Durante todo dia não ligou TV. A desesperança e a calamidade que esperassem ao menos o próximo ano para lhe aborrecer as horas vagas. Aliás, porque não o desapego? Que melhor sinal para o ano vindouro que esta disponibilidade de alma em desapegar? Mas um vinhozinho não ia mal... um vinhozinho e uns petiscos. Luzes apagadas, nada de eletrodomésticos em standby. Desapego também de todos, em seu loft razoável, na sua simulação de sucesso e na independência cômoda da família. Olhou o relógio da sala, que costumava estar impecavelmente correto, até nos segundos, em relação ao relógio do jornal matinal da melhor emissora do país. Olhava aquela certeza impassível, a sorver o vinho e comer queijo. O relógio era um simulacro perfieito de suas ambições. E perdeu-se nessas elocubrações de auto análise ao menos uns dez minutos. Ele, o relógio e sua sincronia, o jornal e suas ambições. 21:40 da noite. Antecipava mentalmente a lista de superstições já preparadas apenas para a rápida e oportuna execução. A mala de viagem, as lentilhas, as uvas... Este ano assim! Promoções e louvores! Que venha o ano!
A febre dessas antecipações foi aos poucos cedendo lugar à leveza que o vinho ia dando ao corpo. Mas e porque não uma soneca? Para que serve o despertador? Olhou novamente seu metafórico relógio: 22:01. Uma sonequinha, para entrar o ano acordado, revigorado. Só uma sonequinha a encurtar o tempo de espera dos prazeres e reconstituir o ânimo que lhe faria sorvê-los com a devida decência de um ano começando.
Não acordou na hora programada: 23:05. Melhor, acordou 23:45, adrenalina espalhou-se por seu corpo. Preparar, preparar, preparar, todos os materiais para as superstições, alinhar-se aos festejos do mundo. Correu e deparou-se com a infantilidade de sua ansiedade ante todos os preparartivos prontos, só restava-lhe tirar o espumante da geladeira.
Retirou e andou devagar para a sala, sentindo o espumante muito gelado querendo obrigá-lo a largá-lo o quanto antes. Mas ele segurava o ano.
Apenas 5 minutos, 5 minutos.
Sentado? Em pé? Sentado?
Em pé, com honrarias da espera.
Faltam 2 minutos.
Sentado com a superioridade da tranquilidade vencedora.
Em pé. Em pé!
Falta 1 minuto.
Segundos.
Contagem regressiva.
5, 4, 3, 2...
O estampido de seu champanhe ressou sozinho no ar, parecia mesmo uma largada queimada. E com a algazarra que não  veio envergonhada em seu rosto, o cenho intrigado, as mãos geladas de segurar o espumante.
Aconteceu algo terível. Ele pensou.
Algo terrível consternou o mundo. Algo terrível era um presságio terrível.
Controle na mão, controle das emoções, ligou a tv.
Na emissora mais popular do Brasil as pessoas pareciam extremamente alegres, já um  tanto altas, eufóricas. 01:05 da manhã no horário de verão.
Sentou pensando e bebendo o espumante: não aturava outro ano mal vindo. Resolveu consigo que o ano tinha passado por cima de si depois de planos feitos, coisas acertadas, ciclos concluídos, enquanto ele experimentava o prazer de dormir de barriga cheia. E tudo isso não podia ser mais que um presságio de prazer e gozo do sucesso. Meio contrafeito, meio resoluto foi dormir novamente, naquele ano em que absolutamente tudo podia acontecer.





You Might Also Like

0 comentários

Populares

Like us on Facebook

Flickr Images