Para minha amiga, Daniele Santos.
Mãe de dois rebentos,
Cria de sua própria liberdade.




As conversas necessárias sempre difíceis com aquela cria insolente.

- Então, como eu estava dizendo, o nome dela é Daniele
- Com um ou dois "l"?
- Que diferença faz?
- Faz na forma de escrever, e nos motivos de escolha dos pais...
- E o que isso interessa agora?
- Sei lá, curiosidades...
- Podemos voltar ao assunto?
- Oh, sim, Senhora, claro, claro!
- Olha o deboche...
- Que me parte a cara?
- O quê?
- Ah não, tudo bem, mãe, essa foi mole meu, né? Sua geração não tem estômago para essas coisas, tipo bater, choro, confronto físico e tal, né, não? Vamo lá com a psicologia mesmo...
- Por isso mesmo minha geração castiga que é uma beleza, porque já sabe no que dá não dar uns limites aos filhos.
- Isso é recorrer à autoridade...
- Pra calar sua boca, né? Isso mesmo, cala a boca! Mamãe, hierarquia, poder, vai falar com você agora, filhinha sem maioridade e renda.
- Jogo sujo...
- Deu? Vamo ficar caladinha pra eu falar logo?!
- Prossiga.
- Assim que mamãe aprova.
- ...
- Pois bem, o nome dela é Daniele e, se te importa saber, o nome é grafado com um "l" só.
- Hum...
- ...
- E...?
- Tô pensando...
- Ih, lá vem parábola! Mãe, pelo amor do seu Deus, me poupe, viu? Me dê um livro, me mande um link, não me pague esse papelão!
- Isso tem que ser conversado assim e como o governo reconhece que eu sou sua tutora e decido como será sua educação, então, aconchega a bunda e baixa a guarda.
- Quanta doçura, tutora amorosa!
- O nome dela é Daniele e é um pouco mais velha que eu...
- E...?
- E ela é pouco mais velha, eu a conheci na época da faculdade.
- Gaby também conhece?
- Não, mas conhece Ivana.
- Larissa conhece?
- Não, e antes que você pergunte conhece Amanda e Fabrícia. Não a conhecemos da UFBA, mas do estágio.
- Hum...
- Olhe o que quero lhe dizer mesmo é que Daniele sempre foi desconcertante para mim, sabe?
- Malucona?
- Nem... Católica até, daquelas que você não entende porque permanece sob essa orientação.
- Igual a você...
- Não sei ao certo. O babado é que ela é bastante corajosa, sabe?
- Feminista?
- Não sei se ela se vê assim, sei não... Veja assim: é daquelas coragens atemporais, que deve ter dado numa  escravizada que um dia se olhou no espelho, decidiu ser e se picou a todo custo.
- Que profundo...
- Você se acredita, né? Pensa que eu ligo pra esse seu ar de absoluta? De quem tá na vanguarda e me ultrapassou? Cago e ando, pirralha.
- Fede até.
- Tô falando sério agora. Melhor: mais sério. Não aturei um útero sacaneador pra você nem me deixar falar na minha própria casa, sendo minha filha. Só abra essa boca se for para falar algo que importe nessa conversa.
-...
- Se eu tô lhe falando de Daniele é porque acho que você tende a caminhar nos passos dela, se for além dessas suas palavras inflamadinhas, desse ar blasé e dos muxoxos de tédio.
- Cê me ama, hein?
- Amo mesmo e você faz esse teatrinho só por isso, porque sabe que não adianta, vou continuar por aqui.
- Tá se declarando, bonita?
- Não, tô te lembrando que se eu me importo de parar pra lhe dizer alguma coisa é porque escolhi lhe parir. E tem tanta coisa mais fácil e mais rentável pra fazer, que num mundo machista parece ate piada decidir ser mãe.
- Pegou pesado, você sabe que eu tô brincando.
- Então para e ouve, porra, que eu não tô!
- Diga.
- Resumindo: Dani teve filhos cedo para o que nós esperamos no século XXI...
- Só isso? Pensei que era no quilates das sufragistas suicidas.
- Nunca pensei que lhe diria isso, mas sua idade não lhe deixa mensurar o quanto isso é difícil...
- Foi uma escolha?
- Sim.
- E não é você que diz que as mulheres têm direito à escolha? Pois então, ó aí a bonita da Daniele escolhendo e vivendo.
- Ó aí você, toda prafrentex, vanguardista e virgem como uma santinha branca do século XII, sendo julgada pelas amigas.
- Mas isso é besteira delas! É uma escolha minha! Você mesma disse que tá muito cedo.
- Pois bem, mas você sabe que nem por isso sua cara deixa de arder.
- Mas...
- A conversa não tá rendendo, sabe? Eu só quero lhe dizer que seja corajosa, entendeu? Foda-se o contraditório. Mas que decida e sustente, porque Daniele nunca me pareceu deixar de andar pra hesitar.
- Transforma num livro!
- Neguinha, supera o deboche, a vida é tão dura... Até a marca do absorvente determina a felicidade de uma dia mais ou menos ou de bunda assada.
(risos)
- Não tinha uma metáfora melhor?
- Não.
- Então vamos logo para a moral da história.
- Já te disse, né? Escolhi a palavra desconcertante para descrever Dani, e isso levou noites e noites para ser decidido. Porque eu vi que nem todo mundo precisa de muitos debates. Tem gente que nasce de calçola pelo avesso, virado no mói de coentro, como dizia sua bisa.
- Tá me mandando ser igual a ela?
- Sugerindo. Mas sem muita certeza.
- Que espécie de mãe é você? Nem decide a diretriz e vem falar comigo.
- Não se trata disso. Tô lhe dizendo que admiro Dani, que você pode ser corajosa como ela, mas que não sei como vou lidar com isso, com tanta autodeterminação. De preferência decida ser assim depois dos 18, será uma impotência mais tranquila...
- Que maluquice! Mas ser assim não será bom?
- Será, mas todo mundo em algum ponto erra e, se eu ficava com um frio na barriga diante de algumas decisões firmes demais de Dani, imagine com você, que eu pari?
- Bonitinho até isso...
- Bonito nada. Lindo, porra. Sou sua mãe, tô te educando, de formando pra vida e tal...
(risos)
- Eu até te amo, sabe?
-...
- Porra, mãe, não chore, véi!
- O gasto emocional e financeiro que você me dá, me libera isso!
(risos)
- É sério, véi, pare! Prometo, vou pensar nesse negócio de "like Daniele".
- Ô, minha pequena...
- Que é maior que você...
- Cala boca, menina, essa é a hora da resolução, do fechamento, da moral da história. Coisas bonitas, a gente se abraça. Nunca leu novela?
- Daniele te aguentava?
(risos)
- Por incrível que pareça, sim.
- Mãe...
- Hum?
- Eu te amo, mesmo, muito, véi. Mesmo com essa papo meia boca. Me conta melhor a história dela? Quem sabe você não pontua no placar?
(risos)

Era do que a história precisava.