Curioso esse negócio de amor
21:22
Curioso esse negócio de amor. Não lhe pedi, não lhe
procurei, tampouco o aceitei de bom grado quando ele se apresentou cínico como
se eu o esperasse há muito tempo. Não lhe abri as portas, nem me preocupei em
melhor acomodá-lo em meu peito. Não adornei a sala de entrada nem espalhei
flores pela casa. Dei-lhe o tratamento mais indiferente que pude, e por
indiferença tratou ele a indiferença. Devassou tudo, pôs em dúvida o
inquestionável, mexeu com o primado da minha razão e fez pouco de tudo que
cultivei. Mais insolente não podia se apresentar.
E fez o que
bem entendeu a seu bel prazer, não que eu houvesse concordado, assentido ou me
calado para assistir sentada a derrocada da educação que me dei. Gritei,
esperneei, convoquei e invoquei cavalarias em minha defesa, e o amor, este belo
sacana, impassível e sereno fez que não ouviu. Sussurou-me ao ouvido, com a
intimidade que não lhe dei, creio que foi assim que pôs cá na minha alma essa
angústia desmedida, palavra a palavra, como se óbvio oculto então estivesse revelado,
simples e arrebatador, sucinto e definitivo.
Acho que foi
assim, neste dia em que o amor me tomou no colo, que ele realizou o mais
nefasto bem. Podia ter deflorado o mais íntimo de mim, e bem sei, seria uma
entrega eterna. E eu lhe teria dado tudo quanto mais pedisse, além da
necessidade, da vontade e da sede, todas as primaveras que seu ego se
dispusesse a querer, a beleza dos anos da minha juventude e a companhia tácita
da minha maturidade.
Bem mais
teria lhe dado, de forma que se me pedisse teria dado a força que impulsiona
minha vida. Muito mais... teria dado vida, pedaços de mim... filhos para
perpetuar seu nome e sua essência. Bem mais, muito mais, além do que eu possa
jurar e crer.
Pedisse o
amor, exigisse, rogasse e tudo lhe teria dado. Mas não. Veio cá, pisou no meu
terreiro, desordenou o já estabelecido e juntou uma a uma todas as minhas juras
e como cavaleiro andante, um dia, de repente, foi-se. Levou tudo, não deixou
esperança, nem de reencontro, nem de reerguimento. Deixou-me muda, sem palavras
nem cânticos, roubou-me os abraços, os beijos e o tato, furtou-me a razão.
E tudo fez a sorrir. Dilacerou-me o peito que,
tola, tratei de entregar-lhe como se fora esse o preço a pagar. Paguei, gota a
gota, com o sangue que já não me pertencia, pactuada com o algoz, que me sorria,
ai, me sorria! E eu bem sabia, que quando o amor me sorria de sua maneira
indecentemente inocente, com ele eu não podia.
Todos os
dias, quando a noite traz pelo cansaço o sono dos potencialmente justos, eu
findo uma batalha da guerra travada contra o incômodo inquilino. Atroz como é,
aceita o meu corpo num letargo fatigado, enquanto vai perturbar o que nem eu
sei que está e como está guardado. Brinca, judia e bem sei eu, machuca. Sabe o Magnânimo que eu
não gostaria de despertar naquele segundo suspenso de um bolero sangrado, num
baixo olhar que receia expandir-se, no exato momento em que me pergunto se me
deixaram as lembranças. Mas desperto e não posso definir a dor que me abate
quando, intacto onde não posso atingi-lo, sorri-me o belo sacana, mais vívido
do que na última batalha, cônscio do terror que me ocorre em pensar que amanhã
acordarei em sua companhia.
Acho que é
neste momento em que mais se alegra, com minha invariável rendição.
Pois bem, eis-me aqui e faça-se de mim a tua
vontade, minha face ao alcance teu tapa, vamos lá, eu o desafio.
1 comentários
Quando eu crescer quero escrever assim! Apesar de meu coração morder os próprio lábios por saber de onde vem essa pérola, ele não se atreve a dizer uma palavra contar a beleza do seu DOM. Eu achei lindo ainda que odeie o que significa...
ResponderExcluir