Breve história de morte e amor

09:18





Ou
Como veio a morte fluir o mar



Um dia ela não acordou.

Ou antes, foi a outra que acordou por ela. E esta outra nem se deu conta de que deixou uma eternidade perecendo na cama. Era quase que exatamente a outra, ou antes, tentava desesperadamente ser, porque havia prometido entre quase lágrimas, uns tantos insultos intimamente proferidos, umas mágoas curtidas com esmero, um sentimento que imaginava amor e seu protuberante orgulho, que haveria de para sempre – não importando o quanto esse tal de para sempre durasse – ser a mesma e amar e odiar com ardor as mesmas coisas e pessoas.
Não que a que perecia na cama houvesse sido o grande engano, a ilusão mais desavisada. Podia-se, por assim dizer, que a outra desabrochou dela, dilacerou-a e nasceu. A outra pereceu feliz, descansando de tanto padecer do mesmo mal. Mas não deu-se conta do feliz luto antes que se deparasse menina com o vítreo verde do mar. Ou teria sido com o castanho das doces delícias infantis? Na dúvida, se recordava dos detalhes, mas não soube de pronto em que prateleira colocar sua nova sensação.

Foi no mar, verde, pactuado solenemente com o Sagrado, que descobriu o abandonar-se que só pensou possível no afogar-se do mesquinho lago das lágrimas não vertidas. E porque não foram vertidas, tanto tempo quedou-se deitada, imaginativa, no árido chão que, quando sentiu o mar fechar seus olhos com a potência sutil de seu mineral, molhar-lhe as roupas, brincar fluido com suas melenas empoeiradas de chão, beijar de todo seu ser só, achou mesmo que era a loucura que vinha lhe presentear com todas as licenças do concreto.

Pactuou-se com o mar.

E como tinha aquele mar, verde, um pacto sereno e adorador com O Sagrado, ficaram suas preces mais singelas, seus rogos mais profundos, flutuando numa tal imensidão, ao bel prazer de uns ventos que vinham conduzir sua humilde oração.

Esqueceu-se, a caminho do mar, como se fosse natural, o caminho de casa. Perdeu-se feliz em um nunca mais voltar. Olhou carinhosa para o seu era uma vez quando fitou o horizonte que adormecia eterno acima do mar. E no mar, verde, rendeu homenagem singela, de um luto sincero e libertador àquela que pereceu feliz na morada que lhe foi casulo.

Pactuou-se com o mar.

E traz para sempre, no caminho que lhe escolha O Sagrado, a força, o tom e a tez de quem dançou nas ondas bravias, em seu morrer sereno na praia, na navegação desbravadora, do mar verde, que seguirá, para sempre, o curso das preces que dobram os joelhos daquela que desabrochou. Mas nada lhe será tão profundo n’alma quanto o verde ao mirar-lhe.

Amava o mar, verde.

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3 comentários

  1. Sabe, minha flor, é impossível não jogar-se em certos mares.
    De início é de dar medo. A gente leva uma vida aprendendo a nadar. Já viu mar em eterno sossego? Um hora ele revolve as águas de lá de baixo e a gente se questiona "e se eu não souber remar?". Sempre saberemos, porque nesse mar não há perecimentos vãos - há perecimento?
    Enfim, pegamo-nos a dizer: ah mar!
    [E você, como sempre, me forçando a ser poética!]

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  2. Mami Sam!
    O que dizer?
    Essa é daquelas nossas concordâncias onde capitulei à custo, mas com gosto!

    :D

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  3. Se com lágrimas eu disser que li, senti e vivi cada uma das suas palavras, saiba que são lágrimas da mais pura alegria de fazer parte de sua vida.. Eu Te Amo! Isso estará escrito nas ondas do mar com (o VERDE) a esperança que você me faz sentir..

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