Formulário de Justificativa de Falta

13:09














Prezada Chefa,

                Venho através deste, justificar falta no dia
                Não pude comparecer, pois,

                Eu tava indo, né? Bonitinha... quer dizer, ajeitadinha, quase docilizada,  com aquelas aprendizagens de condutas já introjetadas, trabalhadora do Capital. Ferrada da silva, depois de uma noite em companhia da única constância inexorável de agora, a dor crônica. Lá, no meu ônibus e tals, reflentido pra porra, lembrando demais das palavras daquele artigo: ”difícil diagnóstico... costumam ser incompreendidas... poliqueixosas... dores diversas”. Esqueci próclises, ênclises e mesóclices, conversei com Deus com o português de bodega. “Supremo Nego, tá estreito, sabe? Sabe, né? Sabe nos mínimos detalhes. E eu pensei bem sério, resolvi voltar atrás. Não leve mais a sério aquele negócio de ‘preciso crescer‘, ‘dê-me situações e força’. Eu tô virando rainha do drama. Eu sou de touro e gosto de pasto e repasto plano e constante.” E eu já tinha pensado isso antes, por isso resolvi ter a conversa inteira, dizer que eu não aguento esse legado católico, essa culpa judaico-cristã e que me arrependo pra caralho desse negócio de pedir para crescer espiritualmente. Mas eu tava indo, né? Resignada já, focada no asfalto, querendo ser tragada pela continuidade.
                Aí o telefone tocou... novidades, fofoquinhas, bereguedê, caixa de fósforo.
                “Amiga, e aí, vai?”
                Isso me fodeu... me ferrou, sabe? Lascou em banda o âmago do meu ser, desorganizou minhas estratégias de contenção. E ela não parou por aí. E tome-lhe “corra atrás de seus desejos”, “não deixe passar”, “eu lhe ajudo”, “vamos fazer isso”, “você pode”. Nem sou adepta de mensagismo ou desses ditos motivacionais. Mas me senti numa palestra caríssima, de salto e maquiagem, num Hotel Fasano da vida assistindo alguém que sobrenome termina em “kopf”, “neider” ou nomes de árvore. E eu dando aquele show hesitante de racionalidade: “Mas amiga, vou para o estágio, PRECISO, TENHO que ir”. Aí o negócio foi ficando fuderosamente sinistro. Pela primeira vez minha retórica queria ser derrubada. Aquele papo Pollyanna foi mexendo com minhas frustrações, tão mal estocadas.
                Não, na verdade, ela não insistiu tanto. Insistiu apenas o suficiente para eu me prover de todas as respostas e justificações possíveis, pra eu não me sentir aquele touro desajeitamente célere correndo entre flores e ovos.
                Aí eu comecei a agir por inércia, deixei meu corpo ficar, relaxei-o no banco, esperando que meu ponto passasse, fosse inevitável tomar um novo rumo diante do incômodo de um novo atraso. Mas eu tinha pego um ônibus errado, teria que fazer isso de qualquer jeito, Deus disse, eu acho, ou minha culpa quis pensar. E ela falando, apertando minha mente como dizem minhas púberes afilhadas.
Não preciso dizer que fui incorporando Rocky Balboa, Christopher Gardner, respirando fundo como quem ai ao ringue e tapando os buracos onde minha vontade tropeçaria com arroubos e qualquer arremedo de justificação.
Não sei se corri tanto num dia só, contando os minutos com minha “amiga-treinadora-coach” dizendo palavras de incentivo, patrocinando a iniciativa e me obrigando, por força do seu discurso direto e autojustificativo a encarar que não sou cosmopolita nem daqui para a esquina, nem corajosa na frente do espelho.
Porra, porra, porra!
Eu queria me xingar, mas não havia tempo. Passamos horas resolvendo, planejando, encaminhando e a cada franzir de cenho não havia plástica mais resoluta e restauradora que as palavras e olhares assertivos da minha querida louca que parecia querer dizer; “vamos a lua buscar o que você quer; é logo ali, vamos com suas pernas mesmo, você foi talhada pra isso”.
De antemão, um spoiler da historia: não deu certo. Quando estávamos no limite do tempo, quando tentar já é uma loucura, repassei o plano mentalmente, listei as providências, as horas de carro pareciam ser a única tortura a me privar da lua. Mas nenhum detalhe podia escapar e o único que havia escapado a todo tempo, jogou-se sobre mim como um lutador de sumô sorridente, antevendo a vitória de um só golpe.
Três linhas nunca dantes lidas e eu aterrissei em casa lacrimejante e vergonhosa, sentindo todos os nervos pulsarem a dizer ”estivemos trabalhando a seu favor e você nem pra ler umas míseras linhas”. Não era o fato, era a porra da vida que tava em jogo, ou melhor, no jogo de gato e rato com minhas vontades.
Não há moral da história. Só eu reflexiva, emputecida da vida, contraditoriamente resignada. Eu só precisava sentir cada membro do meu corpo abandonar a dor pra ir fazer algo maior. Aí larguei as responsabilidades, até um tanto de meu próprio brio e racionalidade. Embarquei no túnel do pasto íngreme e lá fui eu, viver intensidades.
Eu pensei em dizer: “bote, bote aí que devo 365 dias, porque vivi uma vida na intensidade daquele sucinto trajeto.” Achei bonito mas não achei operacional, sabe? Devo, não nego, pago quando puder, se circunscrita na normalidade. (Um dia só, claro)

Eu.

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