Café, por favor

21:46








Podia ser o rebento misterioso naquele pequeno monte sob suas mãos, a querer somar-se ao pacto e seus dias, mas já sabia que, na verdade, era só um ameno receptáculo das arestas da continuidade dos tempos e indícios de uma tal estabilidade. E quanto o seu cabelo havia crescido! Lembrava-se de enfim gostar daqueles cabelos curtos e difíceis sob os olhares verdes e lisonjeiros do bem amado, ainda na mais tenra corte. E agora queriam traçar a curvatura dos sucintos seios. Já serpenteando em direção ao quadril, numa carícia que lhe alcançava as costas, enquanto parte do cabelo detinha-se ao cansaço dos ombros. Parecia uma eternidade vivida, se tão vagarosamente lhe cresciam os cabelos e um punhado de duvidosas certezas.

Ali, aquela cama de tão imponente cabeceira, parecia rogar um dossel que lhe completasse o algo de aristocrático que dormitava nas formas insolentes de um móvel quase simples. Riu de si, de imaginar-se princesa, mesmo que daquele breve reino de Morfeu, tão mal circunscrito em uma casa de poderes antigos, soberanos. Esfregou um pé no outro sob a coberta puída de ser a favorita, como que para se certificar da verossimilhança de sua existência e da negativa de qualquer conto de fadas. Definitivamente não era uma princesa. Antes uma bruxa, como bem dizia a mestra. Ou uma andarilha como dizia o calo que lhe alertava um pé.
Pensamentos que faziam eriçar um pouco os pêlos do braço, como se os possíveis poderes de sua condição catalizassem no ambiente as energias a traduzir mundo para aquele corpo já um tanto débil. Ou talvez fosse frio de corpo completamente nu, na frieza familiar de um quartinho que nunca acabava. A ausência dos outros, de todos os outros que habitavam aquele mundo, fazia a nudez parecer de uma ironia calculadamente cruel, que só não atingia a si e o corpo que experimentava o torpor de um cansaço indolente em lençóis que tinham coberto sua infância.

Olhou a princesinha da colcha e riu silenciosa de como a fazia lembrar de suas coleguinhas, comportadas por um senso solidário ao status que lhes queriam dar através da educação. Sequer pôde sonhar-se assim. Mas isso lhe dava uma incompatibilidade que se insinuava por entre o enlace com as pernas de um príncipe desavisado em sua cama. Algo nela lhe dizia que tratava-se apenas de arrumar os argumentos na ordem correta e em um nível de verossimilhança aceitável.

Nenhum príncipe consumiria café na quantidade do dono daquelas coxas repousadas na sua. E esse era um bom começo.

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