Quase tudo sobre pequenas tragédias

17:47

13/06/2021


Confesso que me inclino à megalomania, ao drama. Então, primeiro pensei nos vilarejos asiáticos devastados, no que há de icônico nas imagens de repórteres americanos engravatados noticiando tornados que podem ser vistos em segundo plano.

Mas eu venho de Periperi. E quando me lembrei disso, achei tão mais adequadas as imagens dos pequenos dramas domésticos dos alagamentos de inverno... É suficientemente devastador: móveis estragados, o suor do trabalho de anos diluído em chuva, adultos e crianças se tornam indocumentados, existindo apenas para o cartório e seus vizinhos. Mas na rua ao lado celebram-se aniversários e reuniões de fim semana. Afinal, é só a vida acontecendo como no inverno passado. Nada de tão disruptivo ou inesperado. E mesmo sabê-lo mal tão conhecido não minora a dor.

Me sinto sobrevivente de mais um inverno numa periferia indistinta do terceiro mundo. A estrutura da minha vida não resistiu à chuva. Cedeu, caiu, dissolveu, enlameou.

Eu já estou aqui aquecida na casa de um vizinha solidária, no abrigo da prefeitura, no meu aluguel social, na casa dos parentes no interior, num quarto na casa de meus pais. Mas a minha casa não existe mais. A fachada que pintamos, as rachaduras, a confiabilidade nas paredes, os pequenos reparos que faríamos em breve em algum momento dos próximos anos e a familiaridade do quarto, da sala e dos aparelhos de jantar desfalcados pelo meus modos estabanados... Junto com natureza, alvenaria e o que nos vestia, agora é tudo monturo, imagem de tragédia.

E, embora a garoa não me sobressalte mais e eu durma noites inteiras sem recorrer à exaustão, minha casa não existe mais. E o devir é uma incógnita para a qual não há equação.

Eu mesma já cansei do ar de tragédia e não sei lidar com a condescendência solidária de quem deseja ouvir minhas aflições. Eu mesma já não tenho ouvidos para as minhas lamúrias.

Planejo sonhos artificiais e me defendo escrevendo tudo que não pude dizer das vigas de minha casa. Tudo que não mais abrigará. Ainda há papéis sobre sua existência e surtem efeitos diversos ao redor do país e onde quer que nos apresentemos. De nada sobre nós se faz proclamas sem que se diga da existência de nossa casa. É estranho. E tão natural como quisemos que fosse a longevidade de sua referência.

Aqui, no Sul do mundo, não há cultura de nomadismo. Os costumes me ensinam dor, estranheza e vergonha pelo que ruiu. E por isso me levanto dos escombros a partir de relatos marginais de amor próprio.

Todo dia eu acordo e levanto da cama em que já durmo sem estremecer, em um mundo em que minha casa não existe mais.

Eu não tinha um plano pra sobreviver. 


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