Alinhavo Simples

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Alinhavo simples. Talvez não. Contemplou mais uma vez. Podia ser de linha forte, mas era, com certeza um alinhavo simples, destes até um pouco largos que deixam ver e sair conteúdo.
Ficou prestando atenção pra ver se via a mãe sobrar através do alinhavo. Repetiu para si e pareceu absurdo denominar alinhavo. Não podia ser menos que agressão de uma sutura emergencial. Pele sobrando de um alinhavo grosseiro que mal esconde a carne. A via assim, alinhavada ou suturada como são a maioria dos pais. Que por força do costume - que vai cosendo-os discretamente desde a infância; ou da ocasião, que joga-os na parede e depois na maca - vão permitindo costuras de contenção.
Dava sempre as costas a conhecidos da mãe. Sempre aguardando 10 ou 15 segundos até virar calculadamente, esperando flagar um olhar saudoso, rancoroso ou lânguido; um traço de saudade ou pesar; esperando flagrar sua mãe e outrem sobrando pela sutura; quem sabe, talvez, até sangrando um pouco, discretamente, por um alinhavo mais antigo, por uma cicatriz inesperada.
Devaneava na fila do mercado que, de repente, um conhecido -  uma conhecida, se o mundo fosse justo -, alguém de mil novecentos e boca de sino, chegaria, inadvertidamente, a fazer rota toda linha que a fizesse caber no vestido. Talvez porque acreditasse piamente em paixão represada e na esperança pueril que a toda paixão corresponde um gatilho específico.
Mas foi na sala de casa sua revelação. Uma epifania de repente. Viu a tudo bordado de sangue; a tudo que nascesse de teares, desfalcado de ao menos um fio.
Sentiu que o tempo urdia ironia. A náusea em ondas. Sentou-se no ponto desolado do tempo-espaço do subúrbio banal. Estava em casa, ouvia a paz da recém manhã. Passou por si a mãe de sempre, flutuando na náusea caleidoscópia. A vida encheu-se de uma ternura branda. Chorou suturas que não conhecia.

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