Cartões, lojas, reflexões étnicos raciais/de gênero e a superinteressante

17:06




Ontem meu início de tarde foi delicioso, sob os auspícios da leitura da Superinteressante durante a surpreendente direção macia de meu irmão me levando ao shopping, em caminhos sem trânsito complicado. E música, sempre música para nos embalar. Roteiro simples, tarefas fáceis: pagar contas, comprar roupas, voltar para casa.
Mas se fosse fácil o nome não era tarefa. Quando acabamos de pagar as contas, dentro de uma imensa loja de departamentos, veio o oferecimento de mais um cartão. Meus olhos de jovem (consumista?) novamente brilharam com timidez a possibilidade de um cartão independente do pai e da mãe. Bandeira mais conhecida, limite maior. Eu, todas as livrarias do mundo e um cartão só meu. Porquê não? Foi no embalo deste pensamento, apenas de maneira menos ambiciosa, que fiz o primeiro cartão, mas crescemos para evoluir (?) e ambicionar mais, não é?
Autocomplacência e justificativas forjadas e com crédito pré aprovado em minha racionalidade(?) em menos de 5 segundos e eu me considerava pronta para seguir a vendedora.
É claro que não acreditei no prazo de "15 a 20 minutinhos" que ela me deu quando falou do período de aprovação, mas aos 40 minutos eu já estava impaciente.
Meu irmão, que aos 30 já dava sinais de irritação pela espera, era o único elemento que destoava do cenário que remontava o de 2 anos atrás, quando adquiri o primeiro cartão. Esparramado na cadeira ele dizia para eu ir até o balcão, para perguntar, exigir, reclamar. Me ocorriam os mesmos pensamentos da primeira vez "estou aqui como todo mundo, o que vão pensar da minha ida até balcão? E se ela me der resposta logo por causa da pressão, como as pessoas vão reagir? Não estarei passando por cima delas?". E meu irmão pressionando. Tentei por um segundo escapar mentalmente daquilo, e minha memória só pôde resgatar a leitura da Superinteressante no carro. Dos incentivos às atitudes de agressividade, imposição, negociação, riscos e empreendedorismo que tinha culturalmente formulado o mundo para os homens (interpretação livre). Só tornou pior. Meu irmão pressionando, a resposta não chegava e eu reconhecendo a mim e a ele como arquétipos perfeitos dos papéis de gênero socialmente estabelecidos. Mas ele estava ali, sem saber, me dizendo que eu podia fazer diferente.
Tudo isto em poucos segundos e no minuto 41 eu precisava me dar novas justificativas, no lugar das implícitas que eu precisava derrubar. Na dúvida, opte pelo coletivo. Olhei todo mundo ao meu redor: caras de cansaço e irritação. O nome da estratégia era Chapolin Colorado: sigam-me os bons. Mas o bom senso dizia que a despeito de minha irritação havia uma trabalhadora, cumprindo ordens, vendendo sua força de trabalho e eu ainda estava com medo. Eu não podia invocar nenhum teórico para falar por mim, nenhuma doutrina jurídica ou pesquisa. A polidez da cientificidade não era possível e o babado era senso comum com muita educação, e eu sou uma notória ríspida quando sem ciência ou ironia. Mesmo hesitando e olhando para o relógio compulsivamente, sentindo o peso do tempo que eu havia perdido, no minuto 43 eu estava no balcão pedindo licença, dando boa tarde e dizendo que eu não queria ser grosseira, mas que queria minha identidade porque já havia perdido muito tempo e me chateado muito.
Só recordo do tom de voz moderado, do sofisma de doçura e do resumo: você não pode desistir agora/ o processo demora mesmo/ não posso ir buscar a sua identidade. A essa altura já era Chapolin Colorado na veia, e eu disse em alto, mas moderado som, que a loja não era uma instituição pública, que não podia reter meus documentos, prerrogativa que nem toda instituição pública tinha. As pessoas foram se aproximando e eu não sabia e sabia o que queria fazer. Tinha vontade de bater o indicador e o anular juntos no antebraço e dizer "sou preta!" como fez Jaqueline no BBB11, e daí descer o barraco.
Estava com medo de perder a razão e, o célebre ditado "preto quado não caga na entrada caga na saída", havia me educado restritivamente. Nada de insubordinação, de tons neons ou vivos e, se possível, de respirar. Básico para ser uma negra cordial no Brasil.
Sem saber como proceder dei 10 minutos para ela resolver, fazendo cara de brava diante da impassividade e aparente desdém dela. Eu recitava "alienação, solidariedade, reestruturação produtiva" para sentir menos raiva dela, mais da empresa e não descompensar. Também o orgulho doía. Tudo que eu estudava e pregava estava posto em cheque por uma situação esdrúxula e eu não conseguia sair das amarras do senso comum, da cultura, nem para a reação básica, advinda do instinto humano, o barraco.
Dali a 8 minutos eu estava tensa pelos incentivos de meu irmão de ir cobrar sem esperar os outros 2 minutos. Já perdendo medo ou receio eu disse a ele que tinha dado 10 minutos, nem a mais nem a menos. Também ele tinha que respeitar minhas escolhas. 2 Minutos e marchei para o balcão, repeti a ladainha e ela também. Puxei a cadeira, sentei e resolvi permanecer olhando fixamente enquato repetia a ladainha e perguntava que conselho ela me dava para resolver. "Hot Line da loja? Gerência? Procon?" Pausada e ironicamente, de forma claramente audível para todos os parceiros de infortúnio. E lá veio a chuva de "cadê minha identidade? Quero agora, meu direito" e suas variáveis.
Resumo da ópera que já está extensa: não aprovou por score - o que é isto no mundo dos cartões, alguém me explique!? - Deixei o barraco armado sem embarracar de fato, e segui meu irmão que já caçava o gerente. Antes de sair revoltada pedi um número de reclamação para trabalhadora, que escreveu no papel um 4004 ... e embaixo "CEO Central". Ou seja, ia gastar meu dinheiro para falar com ela ou ele. Caçamos na loja até uma mulher cuidadosa e delicadamente maquiada se apresentar sob o título que estava no papel. Era para estar feliz, uma mulher lindamente fora dos padrões estéticos estava na chefia e me atendia educadamente. Para não botar defeito. Mas eu estava furiosa, gaguejei para não gritar, para não xingar, enquanto de cima de um salto que a deixava maior, de cima da impassividade e segurança ela observava minha irritação.
Reclamei e saí desejando uma boa noite e um bom trabalho depois de desancar o atendimento na loja dentro das minhas nervosas possibilidades.
Tanta vontade de chorar na volta para casa, tanta revolta e frustração. E minha tendência ao drama me fazendo repensar minhas decisões nos últimos tempos, minha abstenção sistemática a me pronunciar, debater e confrontar em espaços diversos, ações que marcaram minha adolescência cheia de conflitos.

Uma queixa no Procon, um outro blog... coisas que pensei em fazer. E vou fazer, dizendo ao mundo que sou mulher, negra. E dramática. Ao menos o suficiente para repensar os rumos da vida em uma tarde de sábado no shopping.

Dixi.



Vale conferir a reportagem da Superinteressante [junho de 2011] sobre homens e mulheres, que é capa.

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2 comentários

  1. Ai Cal! Ninguém merece. Também fiz este cartão e passei por isso. Como vc, também sabia que os 15 min que a robótica "promotora de vendas" me prometeu não eram verdade, mas ao 30 eu já estava virada da zorra. Aí eu me dei uns 2 min para observar a quem me dirigir e também para ter frieza e segurança o suficiente. Disse a uma atendente algo como: Entendo meu bem, que possa ser um processo demorado, mas eu fui informada do contrário, então se eu não puder ser atendida em no máximo 5 min traga a minha carterira AGORA, por gentileza. A atendente fez cara de desdém, mas chamou alguém, enquanto eu me sentava em frente a ela com cara de psicopata (kkkkkk)- acho que não demorou 3min.
    Nesta situação Cal eu pensei que aquela atendente era a representação daquele sistema desrespeitoso e sinceramente chutei pra longe o raciocínio de que ela estava vendendo a sua força de trabalho. Só me vinha na cabeça que aqueles funcionários arrogantes, mega maquiados, que por algum motivo se achavam no direito de nem olhar para a cara dos clientes (a função de olhar é exclusiva aos promotores de venda), deveriam aprender que eles não são "NADA". Eles tinham que aprender que "qualquer um" poderia humilhá-los e a empresa que os contrata e os reveste de"poder der der deer" (com e quiu!) não está nem aí pra eles, afinal a quem eles iriam reclamar contra a minha legítimo arrogância? Eu estava c/ com razão e os mais importante é que eles soubessem que eu tinha plena consciência disso.
    Me irrita muito este exercício débil do poder que alguns funcionários ostentam. Explorados como são se agarram a esta aparente oportunidade de se sentirem mais importantes, e despejarem em outros as suas frustraçãos de classe trabalhadora. Neste espaço de solicitação de crédito, em especial, os clientes se tornam reféns dos funcionários (e de um tal "sistema" é claro!) por que "deles dependem" a possibilidade de compraaar (endividamente, melhor dizendo), tão cara a população. Muito bizarro!
    Ah! Enquanto as outras pessoas que esperavam também, nos 3 min que esperei vi algumas tentarem fazer a mesma coisa.
    Usei o cartão por + ou - um ano e cancelei, porque mais sacanagens vieram.
    Nem sempre dá certo, mas neste caso eu não me arrependi não.
    Bjoo

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  2. Estreito viu, Nanda! Complicado... me senti humilhada, sabe? Tive que escrever para diminuir o impacto da coisa... e pra lidar com sensação da raiva frustrada, de uma explosão incompleta. Fiquei muito triste à época, mas vc sabe que acredito nos Mistérios Pedagógicos do Divino, né? Isso muda tudo.

    :D

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